Há quem compare a revolução virtual e tecnológica dos últimos 25 anos à conquista do fogo por nossos ancestrais hominídeos, há cerca de 100 mil anos.
Faz sentido se entendermos esses dois marcos como caminhos sem volta, estabelecendo novas formas de linguagem, de pensamento e consequentemente novas relações entre os humanos.
O romance "A Guerra do Fogo", de J. H. Rosny Aînê, publicado pela primeira vez em 1911 e adotado até hoje por escolas na França, Bélgica e também no Brasil, descreve a luta do homem pré-histórico pelo domínio do fogo. Guerras travadas entre grupos rivais, mortes, catástrofes, erros e acertos que se estenderam por milhares de anos até que o homem pudesse deixar sua condição de refém do fenômeno natural e passasse a controlá-lo, pensá-lo e simbolizá-lo.
Alex Cerveny | ||
Na "nova guerra do fogo", a do mundo virtual e da tecnologia da informação, somos ainda reféns (agora de nossa própria criação).
E, como em toda guerra, as crianças são as maiores vítimas.
Estudos científicos são controversos, ora apontam ganhos cognitivos e aumento de atividade cerebral, ora indicam aumento da violência entre os jovens e aumento da obesidade infantil.
A reflexão é urgente. Pais e educadores encontram-se ainda perdidos nesse campo. Como em qualquer outra atividade é necessário educar as crianças. Reprimir ou liberar de forma irrestrita não é a solução. É preciso conter, dar limites, explicar e oferecer alternativas.
É bastante comum adultos acharem graça em seus bebês utilizando tablets, celulares etc. Alguns desses aparelhos já podem ser acoplados aos carrinhos e aos berços. Será que esses pais orgulhosos acreditam estarem estimulando a inteligência dos pequenos? Mas que tipo de inteligência?
Até os três anos de idade, o uso deve ser bem limitado. É preciso que nessa fase o bebê possa construir suas próprias imagens mentais e observar o mundo ao seu redor. Além disso, é importante garantir o brincar livre, criativo, no qual a criança é capaz de transformar um simples galho seco recolhido num jardim em um jogo divertido.
É certo que o espaço da brincadeira de rua está prejudicado em quase todas as cidades do país, assim o jogo e a internet acabam por ocupar esse vazio. É o fogo nefasto que se alastra por campos produtivos.
A experiência do movimento, da habilidade motora, da postura saudável e do conhecimento do próprio corpo sofre prejuízo enquanto as mãos e o olhar estão presos em um tablet por horas a fio. Será necessário regular o tempo de permanência e fazer interrupções a cada 30 minutos de uso, por exemplo. Explicar para as crianças que, antes de dormir, isso atrapalha o sono e os sonhos, e a seguir oferecer um livro, uma história. Jamais jogar durante as refeições.
A participação do adulto deve ir muito alem de um simples sim ou não. É preciso ajudá-los a parar. A maior parte dos jogos são programados para fazer com que o jogador nunca pare.
Alex Cerveny |
É preciso estar presente, olhar nos olhos e propor a eles outras formas de entretenimento. É sobretudo necessário que os adultos larguem seus próprios celulares e computadores para estabelecer com as crianças e adolescentes um campo fértil de comunicação presencial. Assim poderemos desfrutar das maravilhas da nova linguagem.
ANDRÉ TRINDADE é psicólogo e psicomotricista. Autor do livro "Gestos de Cuidado, Gestos de Amor" (Summus)